domingo, 15 de junho de 2008

"Ela"...e somente "ela"


Domingo
_________________continuação 6 de agosto Praia de Santa Cruz, 1995
Encafuo-me nas correcções que tenho de fazer ao livro e não paro se não para bebericar na imperial. Ou para acender mais um cigarro. Já corrigi os dois primeiros capitulos e ainda me falta tanto para acabar. Dou comigo a fazer contas que só no tempo do liceu fazia: ver quantas folhas faltam para o fim. Mais de duzentas. Que desgraça. Olho e leio aquilo como se fosse meu...Como é que me consigo chatear com o que eu próprio escrevi e, nalguma etapa, depois da dor de parir, me lembro de também me ter dado gozo escrever? Mas é um facto: as correcções avançam, ás vezes mais devagar, as vezes mais depressa. Ás vezes não são correcções: pura e simplesmente risco um parágrafo ou uma nota de rodapé e digo-me que mais vale limpar o acessório e deixar o essencial mesmo que tenha custado, antes, a fazer sair...
Dá-me a fome e há muito que a imperial acabou. Quando "ela" passa por mim peço-lhe uma tosta mista e outra imperial.
Enfronho-me de novo nas correcções e destilo raiva pela caneta, o raio dos capitulos nunca mais acabam. O que vale é que o ambiente do Las Vegas é óptimo, e "ela" alegra-me só de vê-la. Ou então não estava ali. Tem boa música. E tem uma televisão sempre ligada num canal qualquer mas sempre sem som, o som é a boa música que "ela" selecciona na aparelhagem...A máquina do tétris ali ao lado de quem vai á casa de banho é que se escaganeira de vez em quando com uns ripipis a chamar a atenção mas poucos lá vão.
È só esse som chato mais o mionho do café, quando extemporaneamente o põem de serviço. Aparte isso sinto-me ali bem, trabalho bem ali. Quem me dera já ter acabádo...mas estou a chegar ao fim de mais um capitulo, estou super concentrado, está a render a revisão...De repente dou um salto na cadeira, apanhei um cagaço dos diabos. Foi "ela" que me trousse a tosta e a pôs na mesa. Dei um senhor salto. Mas agradeci a oportunidade porque a fome já era mais que muita. Não parei para comer. Antes continuei e fui trincando e bebendo e riscando e escrevendo...Até doer.
O Las Vegas está pejado de gente. O serviço corre. Quem serve anda numa estafa constante, "ela" anda numa estafa constante, mas desenvolta!
Fui ao balcão para pagar, queria ir-me embora, estava mais que farto. "Ela" estava a acabar de tirar cafés. Disse-lhe que queria pagar. "...um momento..." foi fazer o troco aos cafés. Via-se que estava muito cansada. Ontem por esta hora, já ali não estava lembro-me disso, lembro-me que "lhe" senti a falta. "Ela" está obviamente cansada, devia pirar-se, sou eu a lembrar-me. E quando vem ter comigo dou-lhe uma nota de quinhentos e mais trinta escudos em moedas.
-É para pagar a imperial e a tosta- digo eu.
Sigo-a com os olhos até á caixa registadora. Vejo-a a pôr o dedo numa lista ao lado, deve estar a ver o preço da tosta. Ou da imperial. E vai para o teclado, para registar, e volta á lista, percorre-a. Faz-se de novo ao teclado. Não, regressa á lista. Finalmente tecla.
Vejo que marca cento e setenta. Está errado. Devia ter marcado centro e trinta. Mais trezentos da tosta.
Fica parada a olhar para o visor, depois para as teclas. Já percebeu que se enganou, que vai ter de rectificar a operação. Puxa do ticket que ia a sair e continua de volta do teclado para marcar. Emendou. Marcou. Regressa direito a mim e eu digo-lhe se não é quatrocentos e trinta.
-Sabe?!
-Então, é como ontem!- respondi.
-E olhe eu que não sabia...-sorria.
-Havia de descansar...- disse-lhe.
Maneou a cabeça e já não sorria, quase chorou se exaustão...
Recolhi o troco sem fazer atenção preocupado com "ela". Já na rua dei em macaquear se "ela", teria feito bem o troco. E ao levar a mão ao bolso para de lá tirar a unica moeda pensei que me devia "ela" ter dado duzentos. Senti a moeda demasiado pequena nas mãos...já estava a comentar-me que "ela" estava mesmo cansada: afinal eu olháva para uma moeda de cem, "ela" tinha-se enganado...È, cansada...
Depois, parado, disse não. "Ela" tinha feito o troco correcto. É, eu continuava cansado . Como "ela", Talvez não tanto...como "ela"...ai "ela", "ela"...
Santa Cruz,domingo 6 de Agosto de 1995, Claudio Barros --"To the pretty girl with the pretty eyes" P.